Às vezes não sei o que hei-de fazer da vida, vejo os dias sucederem-se num comboio estúpido e sem estações conduzido por um maquinista louco, que não faz a mínima ideia onde acaba a linha e o pior é que nem quer saber. O comboio desliza sobre os carris cada vez mais depressa como se a qualquer instante perdesse a aderência e descarrilasse e então imagino as carruagens tombadas com as vísceras das minhas memórias espalhadas por todo o lado, a vida desmantelada naquilo que já foi uma existência rica e cheia e que agora não vale nada. Ou então o comboio transforma-se num pássaro, crescem-lhe asas e cruza os céus com o peso das carruagens às costas que carregam o fardo das minhas memórias, as asas são enormes e desajeitadas e os comboios não sabem voar, o que vejo no céu é um monte de ferro e entulho com asas de chumbo à procura de uma nova dimensão, no derradeiro esforço de tentar, mais uma vez, outro caminho, outra saída para uma existência que perdeu o sentido e o lugar.Às vezes não sei por que é que ainda estou viva.Vejo a morte de noite, umas vezes vestida de branco e outras de preto, às vezes traz flores, outras só uma foice enfiada no cabo de uma vassoura e então grito com ela. Dantes dizia-lhe vai-te embora mas desde ultimamente e com tudo o que se tem passado comigo, digo-lhe fica aqui, leva-me de uma vez por todas, estou farta e cansado, já só dou trabalho e problemas, não aguento mais a tristeza ...leva-me depressa, leva-me, leva-me.Mas a morte é estúpida, é louca e é má, porque só leva quem faz falta ...não há direito.Oiço os passos de quem me rodeia e as suas conversas, oiço as notícias e os documentários, oiço os meus intestinos zangados com o corpo a torcerem-se de raiva e a silvarem como o comboio da minha imaginação, oiço as vozes dos meus amigos ( se é que os tenho) quando me visitam, comprometidos e atarefados entre as reuniões e as festas la deles. Nunca gostei que tivessem pena de mim, penas são coisas de pássaro e não de gente, mas também já não sou gente, pois de dia para dia sinto-me como cadáver.